É irônico eu parar pra pensar no meu relacionamento com minha mãe.
Hoje consigo ver que segui muito mais dos seus passos do que supunha.. Percebi que meus gostos, emoções e até sentimentos, praticamente tudo o que eu sou, passa pela minha mãe.
Gosto de homens_e até isso tem um pouco do dedo dela. Gosto de homens peludos, coisa que ela nunca escondeu. Ruivos sardentos, idem. O mesmo vale pra outros detalhes estéticos mais aleatórios, como um nariz afilado, que passei a admirar. Foi com ela que passei a achar pênis bonito.
Minha rebeldia e excentricidade eu também herdei dela. Algo que ela nunca se deu conta é que ao me dizer quase eternamente "Faça o que eu digo e não faça o que faço.", eu não conseguia prestar atenção no que ela dizia, porque era sempre um "não isso", "não aquilo" ou eu já estava apanhando. Mas o que ela fazia, principalmente o que ela achava que eu não estava prestando atenção, ficou gravado.
Parece que foi ontem que escuto minha mãe dizer que não trocaria a roupa que estivesse usando por causa de ninguém. Ou quando foi à casa de minha tia Sheila, certa vez. Usava uma roupa rendada que parecia ser uma mistura de camiseta regata com sutiã. Algo meio Madonna. Ela pareceu bem chateada quando tio Nelson disse que ela estava parecendo um "chuveirão", uma maneira diferente de dizer "piranha". Podiam falar o que quisessem, mas eu achei que minha mãe estava linda daquele jeito.
Minha mãe também contava de quando em quando, que durante sua adolescência, raspou a cabeça algumas vezes. Rio de quando contava que as perucas que usava ficavam tortas em sua cabeça por algum sacolejo, como quando foi ao tobogã do parque de diversões. Imagino como ela estava ao se descrever ainda bem jovem, com a pele bem bronzeada, usando um macacão amarelo berrante. E que tio Grélo, seu irmão, saía escondido vestindo suas roupas, sem pedir.
Percebi também, que o que não segui de seus passos, ainda assim teve relação direta com ela.
Sabe quando uma criança diz que é a criatura mais bonita do mundo e você ao perguntar quem lhe disse isso, a danada responde com boca larga "Minha mãe!" ? Eu não tive muito isso não. Os outros é que falavam que minha mãe tinha um filho lindo ou muito inteligente e ela fazia uma cara de quem ouviu a maior imbecilidade da face da terra.
Ah, e como eu odiava quando ela cortava meu cabelo...ela me batia para fazer eu ficar quieto na cadeira. Quando pequeno, eu só gostava de deixar meus cabelos serem cortados por Júlia, uma cabeleireira. Minha mãe fervia de raiva com isso. Mal sabia ela do poder que tinha de me entristecer e depois dizer que eu não tinha motivo nenhum pra estar daquele modo e usar frequentemente as expressões: "Você se compraz com isso", "Você nunca vai ser feliz." "Quem não é bom filho nunca vai ser bom em nada na vida." ou a campeã: "MUDA!", como se ela tivesse um controle remoto e eu fosse uma televisão que insistia em estar sempre num canal que ela não queria ver. Soube que durante sua gestação em que esperava por mim, seus dias eram sempre de muita tristeza e cobrança. Acho que ela não conseguiu relaxar nem um pouco depois disso.
Sem querer me fazer de santo, mas mesmo quando tudo estava tranquilo e eu brincando sozinho (quase sempre eu estava sozinho) na varanda de casa, se a vizinha reclamasse que alguém quebrou sua vidraça ou telha, eu apanhava_e muito_ antes mesmo de ela se certificar de que NÃO havia sido eu. Dizia que se eu estivesse dentro de casa, não levantaria dúvidas.
Apanhava se respondesse a quase qualquer pergunta que me fizessem a respeito dos outros. Eu tinha sempre de responder: "Não sei ", Não vi", "Não ouvi", porque não era da minha conta.
Enquanto meus primos eram recompensados por acertos, atos bacanas ou notas altas na escola, minha mãe dizia que era inadmissível "comprar" os filhos pelo que fosse. Em contrapartida, eu era punido por tudo. Cresci tendo literalmente a sensação de ser geneticamente culpado por todas as desgraças do mundo, ou simplesmente por ter nascido.
Antes de começar a estudar, ainda bem pequeno, eu já sabia ler e escrever. E apesar de antes de completar sete anos eu já ter lido toda uma coleção de livros de Monteiro Lobato, eu já havia desenvolvido verdadeiro PAVOR de matemática. Eu era obrigado a decorar a taboada, de livretos horrorosos. Coisa que eu só fazia para não apanhar. Os números eram pra mim como verdugos que me delatavam para a carrasca.
Eu não podia ter contato com outros meninos, não brincava na rua, e passava quase o dia inteiro vendo tevê. Eu sabia de cor toda a programação, músicas, jingles, vinhetas....e por um bom tempo cheguei a me ver como um filho bastardo da Xuxa com o Roberto Marinho, neto do Bozo com a Vovó Mafalda e afilhado do Silvio Santos e a Elke Maravilha. Se o sentimento correspondesse à realidade, ao menos finaceiramente eu estaria bem.
Minha mãe engravidou mais vezes, e eu achava que teria irmãos meninos para me fazer companhia, e a cada menina que nascia, eu me sentia mais só. Às vezes, achava que os gatos da casa_minha mãe sempre teve gatos em casa (isso quando eu não levava pra casa, algum que eu tivesse achado na rua) _me entendiam melhor que meus pais.
Meu universo ficava cada vez mais cor de rosa, mas longe de parecer " La vie en rose".
Tudo o que eu mais gostava de fazer, os outros diziam que era coisa de "viado". Eu só estudava ( na escola eu já era um desajustado, porque além de eu não saber as brincadeiras das outras crianças, elas não tinham paciência de me ensinar; minhas conversas eram adultas demais pras outras crianças e chata demais pros adultos. E eu estudava numa escola particular, em meio a um monte de almofadinhas. Eu era o único pobre da classe), desenhava ( minha vida era desenhar) e lia.
Não jogava bola, não soltava pipa, nunca sentei num carrinho de rolimã, nem me sujei brincando no barro com outras crianças.
Mas se o que eu gostava de fazer, que pra mim era tão legal, era coisa de "viado", ser viado não parecia ser tão ruim como as pessoas faziam parecer que era.
E, como li em outro lugar, "A solidão cria monólogos comoventes quando não conseguem calar suas vítimas".
Minha solidão não era única. Eu vivia num lar solitário. Minha mãe era sozinha para cuidar da casa e dos filhos, eu era sozinho, à minha maneira, sempre sentindo falta da mãe que eu via nas mães dos meus amigos. Meu pai parecia ser sozinho também. Trabalhava como vendedor numa sapataria, taxista, e estava sempre ensaiando, tocando bateria em um grupo musical. Nos víamos pouco ao longo do dia.
Minhas irmãs pareciam ter um pouco mais de sorte. Se elas se sentiam sozinhas, elas tinham umas as outras. Eram três meninas com idades próximas e que tinham vidas parecidas: escolinha, amiguinhas e quando estavam em casa e não podiam sair para a rua para brincar com os amiguinhos, elas estavam lá, juntinhas.
E sei que meu convívio com elas, era bem ácido, por minha causa, assumo. Eu tinha uma dose cavalar de ciúmes, somado ao fato de eu acreditar que estava propagando minha noção de hierarquia. Minha mãe me espancava, eu batia em minhas irmãs.Isso parecia ser também a única forma de eu conseguir bater em minha mãe, por me machucar tanto. Algo nada inteligente de minha parte, porque eu apanhava ainda mais e o ciclo de ódio parecia ser infinito. E eu ganhava a fama de "rebelde sem causa".
Quando meu irmão caçula nasceu, eu já tinha nove anos. Queria ter curtido mais sua chegada. Como diria Renato Russo em Vento no Litoral: "Agimos certo sem querer, foi só o tempo que errou..."
Acho que me afastei demais do foco de hoje, que é o dia das mães.
Pergunto-me como minha mãe se sente no "Dia das mães".
Pra mim, é sempre um turbilhão de sentimentos dos mais confusos. E olha que não sou, nem serei mãe.
A maior sensação que tenho é que minha mãe sempre combateu o que ela criou: EU.
E como não poderia jogar fora, porque filho não é objeto, sempre me punia o tempo todo.
Lembro-me que eu me cercava de "companhias de papel" como revistas da turma da Mônica, que quando minha mãe estava atacada, rasgava ou queimava. O mesmo aconteceu com minhas revistas "Nosso Amiguinho", ou "X-Men".
A verdade é que eu me afeiçoava a essas revistas como quem se afeiçoa a um amigo, já que eu não tinha companhia. E cada vez que isso me era arrancado, era como se parte da minha personalidade fosse açoitada. E eu sempre adquiria alguma coisa nova pra gostar com toda intensidade, quase um fervor, já imaginando quando minha mãe iria destruí-la. Algo que ela, acredito eu, não se dava conta de que de algum modo, me reduzia a zero e me reerguer era uma tarefa nada fácil. Ela nunca percebia que se eu preenchia minha vida com superficialidades, era porque meu coração estava vazio e carente.
Se Cazuza cantava; "...meus heróis morreram de overdose...", os meus nem precisava ir muito longe. Minha mãe matava todos eles sem muito esforço.
Lembro- me de quando pequeno, ser uma espécie de "fiscal" subordinado de minha mãe. Uma vez achei uma revista pornográfica de meu pai, e entreguei a ela. Eu não tinha noção do que significava. Havia folheado e as fotos não me diziam muita coisa, mas a partir daí, tudo o que eu achasse a respeito deveria entregar a ela, delatando meu pai. Mais velho fui perceber que estava trabalhando pro lado negro da força (risos), quando comecei a ter acesso às pornografias e gostar da coisa. Eu já estava acostumado com o resultado: ela achava e destruía, como a tudo o que mais me dissesse respeito. E não queria saber se as revistas eram minhas ou não. Rasgava e pronto.
Lembro-me ainda, que na infância também odiava as roupas que ela me vestia. Uns shorts bem curtinhos de veludo e umas camisetas hering. De quando em vez, ela costurava umas bermudas para mim. Apesar de eu não gostar das tais bermudas, eu as usava por duas razões: uma, pra fazer minha mãe feliz, por usar algo feito por ela; duas, pra não apanhar, claro.
Em minha adolescência, acredito que minha mãe gostaria de ter um filho totalmente diferente do que eu era. E a recíproca era verdadeira, porque eu queria uma mãe que fosse diferente também. Cheguei a desejar que ela tivesse tido algum prazer em me fazer, porque em algum momento pelo menos, um de nós teria tido prazer em alguma coisa.
E irônico, se eu quisesse usar shorts curtos ou bermudas largas, agora era proibido.
Se antes eu era proibido de fazer parte de um círculo social, eu passava a ser obrigado.
Se na infância eu era punido por dizer a verdade, estando errado ou não, na adolescência eu mentia até meu nome e fiz muitas coisas das quais não me orgulho.
Passava o tempo que fosse possível pra não ficar em casa, e mesmo lá, quase não comia. Quando voltava, recebia uma bronca que fazia eu ter vontade de voltar imediatamente pra rua. Não tinha estímulo nenhum para manter um convívio amigável. E quando eu comecei a fazer a política do espelho, e tratar minha mãe como eu era tratado_tirando as agressões físicas_ nosso relacionamento passou de ruim a "pior que tétrico".
Não esqueço também do quão minha situação com minha mãe conseguiu piorar ainda mais quando eu contei que sou gay e tempos depois acabei sendo colocado pra fora de casa.
Olhando pra trás, vejo coisas boas também. Minha mãe nunca me deixou sair sujo de casa, de tempos em tempos, queimava as mãos no fogão fazendo doce de goiaba ou geléia de jabuticaba_eu e meus irmãos sempre encarávamos como doce a cera de depilação que ela fazia. Ficava puta da vida quando ia conferir no fogão, pra saber se já estava no ponto e não encontrava mais nada por lá...Risos
Por sua causa também, tive um grande empurrão pra terminar o segundo grau.
Hoje parecemos estar bem, mas tem muita coisa mal resolvida e lacunas a serem preenchidas. A distância e a saudade foram um tempero bacana para nos vermos de uma forma mais agradável. Minha mãe procura saber o que tenho vontade de comer e se esforça para poder fazer, mesmo quando digo que não quero nada ou que não precisa se incomodar.
Sinto a areia do tempo escoando e gostaria de poder fazer algo diferente, sentir algumas coisas de maneira diferente.
Preciso fazer as pazes comigo mesmo por tudo que eu me permiti passar, escolhendo ou não, e fazer as pazes com minha mãe, que muitas vezes ao dizer que me ama (eu tenho problemas SÉRIOS quando ela diz isso), parece amar um eu que na verdade ela queria que eu fosse, e que de fato, não sou eu, além de fazer lembrar que ela praticamente só dizia isso em minha infância, depois de me dar uma surra, da qual eu saía inteiro por milagre: "Fiz isso porque eu te amo, meu filho".
Hoje é dia das mães e gostaria que minha mãe me enxergasse como sou, soubesse que apesar de tudo eu a amo, do meu modo, claro.
E gostaria de saber também que ainda há tempo para caminharmos juntos.
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