terça-feira, 4 de outubro de 2011

UMA GATA MUDOU MINHA VIDA


Aos amigos de plantão, não é o que vocês podem estar pensando. Nenhuma "gata" entrou em minha vida. Dia desses estava em uma recepção de um consultório médico, e como quase todo mundo, resolvi folhear uma revista (que no caso, em questão, era uma  Marie Claire) disponível em um cesto por lá. Achei o texto tão interessante que resolvi transcrevê-lo aqui. E para minha sorte, o encontrei no site da revista. Dedico essa postagem à amiga Ana Kolesza, aproveitando  também a data de hoje, dia de São Francisco de Assis, protetor dos animais.


 Foto: Gabriel Lindoso
Cláudia com a gata Sabrina

A publicitária Cláudia Eliana Perin Bertoni, 32 anos, andava insatisfeita e sem coragem quando recolheu uma gata perdida. Para que o animal pudesse ficar no apartamento que dividia com uma amiga, precisou aprender a brigar e viu que era mais forte do que pensava. Resolveu morar sozinha, mudou de emprego e achou sua vocação: dona de seis gatos, luta para salvar animais abandonados

Há três anos eu era infeliz e não sabia. Dividia um apartamento pequeno  com uma amiga, mas nossos horários e personalidades eram diferentes. Em quase dez anos morando juntas, a amizade tinha se desgastado. Pouco nos víamos e menos nos falávamos. Eu também não estava contente com meu trabalho como redatora em uma agência de publicidade pequena. Virava noites trabalhando sem reconhecimento. Mas não conseguia me posicionar. Achava que estava tudo bem porque não via outra saída. Uma noite, ao chegar do trabalho, liguei a TV. Da minha janela via o jardim térreo dos vizinhos, um casal de velhinhos de poucas palavras. Sentei no sofá ainda com a roupa do trabalho e fiquei vendo o ‘Jornal Nacional’.
De repente, ouvi um miado. Corri até a janela. Algo branquinho me olhou no meio das folhagens. Era uma gatinha, assustada e linda! Nunca imaginei que aquele casal tão seco pudesse ter uma bichana tão fofa. 


Mas mal pensei isso e o dono da casa apareceu. Em um ato brusco e decidido, pegou a gatinha, assustadíssima, e a levou com severidade. ‘Ela não é do senhor?’, perguntei. Ele, seco como eu imaginava, disse: ‘Não! Você quer?’. Observei a gatinha, insegura naquele braço, olhando para mim e para ele. Surpresa com a proposta, disse que não poderia ficar com ela. Voltei ao sofá e imaginei a cena dele a colocando na rua. Meus vizinhos eram exatamente como eu pensava.
Na noite seguinte, de novo, eu estava em frente à TV assistindo ao jornal. O serviço de entrega de comida demorava com meu estrogonofe. Tudo se repetia. Mas, quando desci para receber o entregador, uma surpresa: enroscando-se entre minhas pernas estava a gatinha branca. Fiquei com o coração partido ao imaginar que ela passaria a noite toda ali, esperando que alguém abrisse uma porta. Olhei para ela e pensei: ‘Se ela subir e acertar qual é meu apartamento, entra’. 


Ela foi subindo na minha frente e, quando vi, estava plantada na frente da minha porta. Peguei um pirex e dividi com ela meu estrogonofe (a gatinha estava faminta). Em um flashback, me vi pequenininha, no jardim de minha casa, correndo atrás dos meus gatos com bolinhas de papel. Sou de Lins, interior de São Paulo, e minha família sempre amou bichos. Chegamos a ter 12 gatos. Uma das lembranças mais fortes da minha infância é de quando tinha 5 anos: eu chorando agarrada às grades do berço porque meu gato branco tinha sido atropelado. 


Logo providenciei os pedacinhos de papel para a gatinha e comecei a arremessá-los pelo apartamento. Me esqueci da vida, até me dar conta de que Tânia*, minha amiga do apartamento, estava para chegar. E não ia querer a gata. Minha alegria estava ameaçada! Quando Tânia chegou, viu a gatinha correndo como um furacão pelo apartamento e me olhou séria. Mas, para minha surpresa, abriu a boca e disse: ‘O nome dela vai ser Cleo’. E, como há anos não acontecia, nos divertimos juntas.


Que semana aquela! Cada dia eu voltava com um mimo: bolinhas, ratinhos de brinquedo, rações de mil sabores. Pela primeira vez, em anos, tinha alguém me esperando em casa. Meu namorado freqüentava o apartamento, mas não todos os dias. Antes da gata eu sentia que, se chegasse às seis ou à meia-noite, tanto fazia. Minha chegada não alterava a vida de ninguém. É incrível como um serzinho pode mudar essa sensação e aumentar sua auto-estima. Eu era feliz com uma simples gatinha!
Uma semana depois, Cleo e eu estávamos totalmente entrosadas. Até que, uma noite, o interfone tocou e uma voz fez meu mundo ruir: ‘Sou sua vizinha e minha gata, a Cindy, sumiu. Soube que você a recolheu...’. Olhei aflita para a Cleo.
A moça era a namorada do meu vizinho, o verdadeiro dono da gata. Entraram festejando: ‘Cindy, você está aqui!’. Ainda arrisquei: ‘Por favor, deixem ela ficar, estou tão feliz, minha vida está tão feliz, o apartamento esta tão feliz...’. Mas o moço respondeu: ‘Minha mãe adora ela’.
Eu sabia que eles moravam em uma casa com quintal. Abracei a Cleo e disse: ‘Vai ser melhor para você’. Fiz sua ‘trouxinha’: casinha, guloseimas, ratinhos. Tudo era cruel. Desci com ela no colo: ‘Tchau, Cleo. Você tem que voltar a ser Cindy’. Subi aos prantos. A magia tinha ido embora.


Uma semana depois, eu já estava plenamente readaptada à minha inércia emocional quando o interfone tocou de novo. Era a mãe do vizinho, a dona da Cindy: ‘Oi, você tratou tão bem da minha gata que resolvi te dar um presente’. E colocou no meu colo uma gatinha branca, com um detalhe que faria eu me apaixonar para sempre por ela: um olho verde, outro azul. Agradeci, meio sem saber o que fazer. Me senti como se estivesse fazendo uma adoção. Em casa, ela se escondeu dentro de um sapato, coitadinha. Pensei: ‘Desta vez, quem dá o nome sou eu’. Na TV, vi a Sabrina, apresentadora de TV. Resolvido: ‘Vai ser a minha Sabrininha, que vai subir na cama para me acordar’


Assumi aquela ‘maternidade’ e comecei a enxergar quando uma coisa é mais importante na vida do que outras. Comecei a estabelecer prioridades emocionais.
Como eu previa, Tânia não queria dividir o espaço com mais ninguém. Na verdade, já não queria dividi-lo comigo. Ao ver que Sabrina tinha vindo para ficar, o clima foi ficando pesado. Quando eu saía, Tânia trancava Sabrina na área de serviço. E eu passava o dia fora.
Só que, antes, era dificílimo para mim dizer coisas como ‘não quero, não gosto, impossível’. Comecei, então, a perceber que tinha baixado muito a minha defesa naqueles dez anos sozinha em São Paulo. Vi que, quando deixei minha família estruturada no interior para estudar na USP, não soube lidar com esse universo tão grande. Fui aceitando o que o mundo me colocava, como se não tivesse escolha.


Até Sabrina aparecer, eu não conseguia diferenciar o que eu gostava de coração do que eu simplesmente aceitava. Para defendê-la, tive de aprender, como os gatos, a marcar meu território. Passei a dizer para a Tânia que não queria a gata presa, que a casa não era só dela... Meu lado contestador, agressivo até, começava a nascer. É impressionante, eu tinha feito oito anos de terapia para melhorar a auto-estima e aprender a defender meus interesses, e foi justamente uma relação sem palavras com uma gata que me ajudou tanto.
Ninguém entendia muito bem o que estava acontecendo, nem eu. Pela primeira vez, a situação estava insuportável para Tânia também, não só para mim. E isso me dava uma espécie de prazer mórbido. A briga invisível era para ver quem se mudava. Para mim, tinha um peso grande desistir. Minha vontade era incomodar e não mais me sentir incomodada.  
Um dia, a Sabrina estava no cio e Tânia a trancou na área de serviço sem água nem comida.



 Fiquei louca! Tânia chegou a deixar um bilhete exigindo que meu namorado não dormisse mais em casa e que ‘me livrasse’ da Sabrina. Chegou um ponto em que nem meu namorado me apoiava mais. Afinal, Sabrina era ‘apenas uma gata’. Mas para mim ela significava muito.
O impasse durou seis meses, até que Tânia decidiu se mudar. Foi uma necessidade: um apartamento de 55 metros quadrados para duas mulheres, uma gata e mais um namorado que dormia lá freqüentemente era pouco. Minha vitória foi descobrir que eu queria morar sozinha, decorar a casa do meu jeito, ter gato e deixar o gato subir na cama. Eu não era morna, tinha vontade própria!
Mesmo assim, a saída da Tânia, no começo, foi traumática para mim. Tínhamos amigos em comum, muitos acharam que eu a tinha expulsado do apartamento e se afastaram. Fiquei triste e vivi uma fase de interiorização. Meu objetivo era apenas fazer as coisas que eu queria, do meu jeito.
Minha vida foi mudando cada vez mais. Sou voluntária em um orfanato há sete anos e, cinco meses depois que Tânia se mudou, uma das crianças me levou até uma gatinha abandonada. Era preta e branca e bem magrinha. Acabava de entrar na minha vida a Didi, que levei para dividir o espaço com a Sabrina.


Nesse orfanato, a maioria das crianças veio da Febem. Eu sempre insisti para que elas tivessem um animal, é importante para abrir o canal afetivo. Um dia apareceu uma vira-lata, que batizamos de Princesa. Batalhei para ela ficar lá, dou ração, arranjo veterinário de graça, comprei uma casinha. A recompensa veio na melhor forma. Uma das crianças mais difíceis e agressivas, pela primeira vez, estabeleceu um vínculo afetivo com ‘alguém’: a Princesa.
Uma semana depois, no trabalho, escutei miados desesperados de uma filhotinha preta, na varanda da empresa. Todos decidiram ajudá-la. Me propus a levá-la para casa, cuidar dela e trazê-la de volta. Mas não trouxe. Tinha entrado na minha vida a Pretinha. 


As mudanças provocadas pela Sabrina foram se expandindo por outras áreas de minha vida. O trabalho, que me incomodava, se tornou insuportável. Criei coragem e pedi demissão, sem ter nenhum emprego em vista. Um mês depois, recebi a proposta de uma agência melhor, com condições e salário melhores. Terminou aí um ciclo de problemas emocionais. Só não troquei de namorado. Ele acompanhou todo o processo e também notou minha mudança. Comentou que eu estava mais espontânea. Hoje sou outra pessoa comparada àquela Cláudia que olhava pela janela no dia em que ouviu um miado. Engordei 12 kg e fiquei muito melhor, as pessoas comentam que fiquei mais bonita. Eu era magra demais e isso tinha a ver com o confinamento da minha personalidade. Sinto que, nesses três anos, cresci literalmente. Tenho um sorriso mais franco. Chego em casa e já não ligo a TV.



Poucos amigos sobraram daquela época em que eu topava qualquer programa só porque não sabia o que queria. Mas os que ficaram, tenho certeza, me amam. Tânia e eu, depois de um breve afastamento, voltamos a ser grandes amigas. A culpa de eu não saber me defender não era dela. Meu namorado também sente orgulho de mim e do trabalho que realizo. Ele entendeu meu amor pelos bichos e aceitou meus gatos. Brinca com eles, pega no colo.
Aos poucos, fui adotando mais gatos: em dezembro de 1998, na avenida Paulista, à noite, escutei miados. Dentro de uma caixinha de papelão, vi dois filhotes. Ofereci cinco reais para o guardador de carros que estava com os gatinhos e ganhei o Frajola, o amor da minha vida.
Depois, uma gata siamesa derrubou uma filhotinha do te-lhado da vizinha: peguei aquela bolinha cor de café-com-leite, que acabou se transformando na minha gata Pikachu. Da segunda cria dessa siamesa nasceu a Tetê. Hoje tenho seis gatos e, apesar de o apartamento ser arejado, com telas nas janelas, estou procurando um lugar maior. 


Também comecei a me envolver cada vez mais com as causas dos animais. Um dia, recolhi uma gatinha pintada com tinta spray. Uma monstruosidade. Encaminhei para adoção. Outra vez, na rua, vi alguma coisa se mexendo em um lixão. Eram três filhotes tão pequenos que a mamadeira nem cabia na boca deles. Achei uma mãe adotiva para os alimentar. Depois, vi uma cadelinha nenê tentando alcançar a lixeira na calçada. Estava tão doente que ficou três meses no veterinário —ele a adotou, aliás. E já fiz mais, muito mais. 


Uma amiga e eu recolhemos voluntariamente os animais de rua e tentamos encaminhá-los para a adoção. Virei figurinha fácil de asso-ciações ligadas aos direitos dos animais. Também recolho bichos para serem castrados e não ficarem na rua se reproduzindo e gerando mais animais aban-donados. Sempre mandei fax para os jornais sobre o absurdo da câmara de descompressão do Centro de Controle de Zoonoses da Prefeitura de São Paulo, que tem uma forma hedionda de matar animais: por asfixia. No ano passado, o método foi substituído por injeção letal, mas há risco de a câmara ser reativada e o número de animais sacrificados ainda é muito grande.
Se não é possível fazer muito, denunciar casos de agressão ou negligência às entidades que protegem animais pelo menos ajuda. Isso é participar como cidadão. Precisamos ampliar nossa visão de cidadania, encarando a participação voluntária como missão e não como obrigação. 

Ouço muitas críticas por me dedicar tanto aos animais. Uma vez, a síndica do meu prédio passou uma circular no prédio dizendo: ‘Entre pessoas e animais, fiquemos com as pessoas’. Isso não faz sentido, porque a gente não está escolhendo entre pessoas e animais, mas entre pessoas que querem ou não ter animais. Outro absurdo é dizer: ‘Não ajudo animais porque existem crianças carentes’. Muita gente tem essa mentalidade, mas os problemas não estão em fila, primeiro um, depois o outro. Se fosse assim, a questão das crianças já estaria resolvida. Quem não gosta de bichos é quem não gosta de gente. Pode até ser coincidência, mas todas as pessoas que conheci que odeiam animais parecem ter o canal da afetividade entupido. Talvez por-que o animal dê amor espontaneamente. A pessoa se sente cobrada e se fecha para tudo. É uma espécie de falta de entrega.


Minha avó, argentina, era o tipo que jogava ninhadas de gatos no rio. O castigo dela foi a família toda amar animais. Minha tia tem 30 gatos. Meu pai é uma pessoa super-racional, lê cinco jornais, mas me liga para contar que seu gatinho, Pirilampo, subiu no armário e achou um pedaço de carne. Eu perdoei minha avó. Como muita gente, ela passou pela vida sem compreender esse lado do amor pelos animais.” 




Depoimento a Rosane Queiroz
O nome da amiga foi trocado a pedido da entrevistada

Um comentário:

  1. Hoje o fb me lembrou do dia que você me mandou esse texto..
    Eu adorei da primeira vez que i e adorei hoje novamente.
    Obrigada!

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